FAO no Brasil

Violência sexual no campo: uma realidade invisível

14/10/2018

Maria*, 51 anos, viveu tantos episódios de violência contra seu corpo e sua dignidade que naturalizou tais crimes como parte inerente da vida da mulher rural. Dos 7 aos 15 anos foi violentada pelo tio, que dividia o terreno onde morava com seus pais. Se casou aos 16 anos imaginando que se livraria dos assédios sexuais, mas encontrou, dentro do seu lar e de seu casamento, seu maior algoz.

Demorou 35 anos para entender que o estupro e a violência física não eram um direito adquirido pelo marido ao se casar. Quando o pai de seus cinco filhos faleceu, ela conta, experimentou, pela primeira vez na sua vida, a paz de espírito de não viver diariamente sob a ameaça do abuso. 

“A vida da gente aqui no mato é diferente. Porque tem dores que a gente aceita e segue a vida. Eu demorei para entender o que não estava certo. Nunca tive nenhuma pessoa para falar para mim que não estava certo. Quando eu vi que a vida sem essa ameaça existia, chorei por mim mesma, pensando que podia ter sido tão diferente”, conta.

Maria nunca denunciou nenhum dos estupros ou violências físicas e psicológicas sofridas. Nem mesmo as compartilhava com as amigas ou vizinhas. O tabu, segundo a agricultora, ainda é presente em sua comunidade, em Goiás. “A gente sabe, percebe que alguém está passando essas dificuldades. Mas fica com medo de se meter. É muito comum. Se a gente se mete, pode piorar a situação”, lamenta.

A questão da violência rural ainda é uma grande incógnita em termos de estudos e levantamentos. Enquanto a sociedade tem discutido e estudado cada vez mais a violência sexual contra as mulheres, os debates e as pesquisas, muitas vezes, se restringem às cidades grandes, não incluindo um olhar direcionado às trabalhadoras rurais.

As singularidades que levam a uma falta de números para o desenho de um quadro real sobre a situação das mulheres no campo, são frutos do distanciamento geográfico delas em relação a diversos serviços: saúde, assistência social, educação e segurança. Tais empecilhos para o correto levantamento de dados, porém, precisam ser vencidos.

No estudo “Mulheres rurais e violências: leituras de uma realidade que flerta com a ficção”, dos pesquisadores André Luis Machado e Marta Julia Marques, a ideia de que as violências contra as mulheres são fruto direto de desigualdades sociais, de gênero, da distribuição injusta de renda, da dificuldade do acesso dos mais pobres aos bens de consumo explica parte do problema é apenas uma das visões válidas. “No entanto, considera-se que a forma de relação com essas disparidades econômicas, vividas por homens e mulheres, em especial, no rural, estão na gênese de conflitos violentos, ao vulnerabilizar, sobretudo, as mulheres como vítimas de atos violentos”, afirmam os pesquisadores.

De acordo com o estudo, nessa perspectiva, discutir pobreza e pobreza rural feminina, precisa, necessariamente, considerar o recorte de gênero, uma vez que as condições objetivas de trabalho se apresentam de forma diferente para homens e mulheres. As práticas femininas, historicamente invisíveis na esfera produtiva, permanecem subalternizadas nessas relações, em que o salário das mulheres é percebido não como fonte principal de renda, mas como rendimento complementar e como trabalho coadjuvante para o âmbito familiar. Assim, o debate sobre a “feminização” da pobreza evidencia a vulnerabilidade das mulheres

Tire suas dúvidas:


Quais as principais formas de violência praticadas contra a mulher?
– Violência física: qualquer ato que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
– Violência psicológica: qualquer ato que lhe cause dano emocional e diminuição de autoestima;
– Violência sexual: qualquer ato que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada;
– Violência patrimonial: qualquer ato que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos;
– Violência moral: qualquer ato que configure calúnia, difamação e injúria.

O que deve fazer uma mulher vítima de agressão?
Ligar para a Central de Atendimento à Mulher (180), acionado de qualquer terminal telefônico, 24 horas, todos os dias da semana. O atendimento informa e orienta as mulheres quanto ao que fazer. A mulher também pode comparecer à delegacia mais próxima, registrar a ocorrência e solicitar as medidas protetivas de urgência.

Após o registro na Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), a vítima estará integralmente protegida pela Lei Maria da Penha? 
Na esfera policial, a vítima vai requerer as medidas protetivas, cabendo ao juiz apreciá-las em 48 horas, após o recebimento. Elas somente produzirão efeito após apreciação e determinação judicial. A partir daí, o agressor, caso as descumpra, terá praticado crime de desobediência e estará sujeito a ter decretada sua prisão preventiva. Entre as medidas protetivas de urgência estão: suspensão da posse ou porte de armas; afastamento do lar ou da convivência com a ofendida; proibição de aproximar-se ou fazer qualquer meio de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, entre outras determinações. Além das medidas protetivas, a vítima poderá imediatamente ser encaminhada à Casa Abrigo.

Qual é o procedimento policial após o registro da ocorrência? O agressor será preso?
Depende da situação. Ao verificar-se situação de flagrante de delito, o agressor será autuado e encaminhado, após o procedimento, à carceragem do Departamento de Polícia Especializada e, posteriormente, ao sistema penitenciário, ficando à disposição da Justiça. Há casos em que a lei permite pagamento de fiança. Não sendo caso de prisão em flagrante, o fato será registrado, a vítima, as testemunhas e o agressor serão formalmente ouvidos, e colhida representação ou requerimento da ofendida, quando houver. Todos os antecedentes criminais do autor serão pesquisados e juntados ao procedimento. O conjunto dessas diligências irá instruir o inquérito policial.

Como a mulher que depende financeiramente do seu agressor deve agir quando enfrentar situações de violência doméstica e familiar?
O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais dos governos federal, estadual e municipal. Entre outras medidas, o juiz pode determinar a recondução da ofendida e a de deus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida, entre outras medidas.

Pode um terceiro registrar a ocorrência em casos de violência contra a mulher ou apenas a vítima pode fazê-lo?
Nos crimes de ação pública, qualquer pessoa pode noticiar uma violência. Nos crimes de ação pública condicionada à representação da vítima, a notícia-crime de terceiro só terá prosseguimento se a vítima também representar contra o agressor. Nos crimes de ação privada — tais como crimes de injúria, calúnia, difamação —, somente a vítima poderá noticiar.

(Fontes: Cartilha Lei Maria da Penha & Direitos da Mulher, de 2011, org. Ministério Público Federal/Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC e Secretaria de Estado da Mulher do DF)

 

15 dias pela autonomia das mulheres rurais

Os papéis desempenhados pelas mulheres rurais são tão numerosos quanto suas lutas e vitórias. O que não faltam são histórias de vida inspiradoras. No entanto, ainda não possuem o reconhecimento merecido. Sofrem com o preconceito, com a desigualdade de gênero e com outros problemas que herdaram da vida. Ainda há um longo caminho para o equilíbrio de direitos e oportunidades entre homens e mulheres. A fim de mostrar que equidade de gênero e respeito são valores necessários cotidianamente, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou que 2018 seria o Ano da Mulher Rural.

Pensando nisso, a partir do primeiro dia do mês de outubro, iniciamos, no portal, uma série de matérias que fazem parte da Campanha Regional pela Plena Autonomia das Mulheres Rurais e Indígenas da América Latina e do Caribe - 2018. Serão 15 dias de ativismo em prol das trabalhadoras rurais que, de acordo com o censo demográfico mais recente, são responsáveis pela renda de 42,2% das famílias do campo no Brasil.