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Módulo 4
COMPREENDER A RELAÇÃO ENTRE A
AGROBIODIVERSIDADE E O CONHECIMENTO LOCAL

O CONHECIMENTO LOCAL COMO PARTE DA AGROBIODIVERSIDADE

No Módulo 3 abordamos as ligações entre a biodiversidade agrícola e o género. Neste Módulo iremos expandir estas ligações analisando as interligações entre a agrobiodiversidade e o conhecimento local. Primeiramente vamos olhar para a definição de “conhecimento” antes de prosseguir com esta análise.

[Caixa 1] O QUE É O CONHECIMENTO?
O conhecimento refere-se à forma como as populações compreendem o mundo, a maneira como elas interpretam e aplicam significado às suas experiências. O conhecimento não é descoberta de alguma “verdade” objectiva final. É sim a compreensão culturalmente subjectiva - produtos condicionados que emergem de processos complexos e contínuos. O conhecimento envolve a selecção, rejeição, criação, desenvolvimento e transformação de informação. Estes processos, e portanto o conhecimento, estão intrinsecamente ligados aos contextos sociais, ambientais e institucionais nos quais eles se encontram.
Blaikie, 1992.

Esta definição é muito importante para nós porque ela contém um número de características importantes que são significativas para compreender o conhecimento local. Estas características incluem:

O conhecimento local é a informação que as populações, numa determinada comunidade, desenvolveram ao longo do tempo. É baseado na experiência, adaptado à cultura e ambiente local, e está em constante desenvolvimento. Este conhecimento é usado para sustentar a comunidade, sua cultura e os recursos genéticos necessários para a sobrevivência contínua da comunidade.

O conhecimento local inclui inventários mentais dos recursos biológicos locais, raças de animais, plantas locais e espécies de culturas e árvores. Pode incluir informação acerca de árvores e plantas que crescem bem juntos, de plantas indicadoras que revelam a salinidade do solo ou que florescem no início da época da chuva. Inclui também práticas e tecnologias, tais como os métodos de tratamento e armazenamento de sementes e materiais usados para o plantio e colheita. O conhecimento local engloba também sistemas de crenças que desempenham um papel fundamental na subsistência das populações, na manutenção da sua saúde e na protecção e renovação do ambiente. O conhecimento local é dinâmico por natureza e pode incluir a experimentação da integração de novas plantas ou espécies de árvores nos sistemas agrícolas existentes ou dos testes de novas plantas medicinais pelos curandeiros tradicionais.

O conhecimento local é muitas vezes colectivo por natureza. É considerado propriedade de toda a comunidade e não pertence a nenhum indivíduo em singular. Mas, como aprendemos no Módulo 1, isto depende do tipo de conhecimento. Podemos distinguir entre:

A transferência de conhecimento irá acontecer de diferentes maneiras, dependendo do tipo de conhecimento. Por exemplo, muito do conhecimento comum, é partilhado nas actividades diárias com os outros membros da família e vizinhos. Durante o trabalho e as interacções diárias, as crianças, por exemplo, observam e experienciam o conhecimento detido pelos mais velhos e pelos membros da família e adquirem-no ao longo do tempo. Os locais públicos, tais como os mercados ou os moinhos comunitários são locais importantes, onde a partilha de informações acontece. O conhecimento comum está intimamente ligado à vida diária das comunidades locais. Elas não o tratam como sendo uma coisa separada ou que precisa de mecanismos específicos de transmissão.

Um caso diferente é a transmissão do conhecimento partilhado ou especializado. Aqui, a transmissão realiza-se através de mecanismos específicos de troca de informações culturais e tradicionais. Por exemplo, pode ser mantida e transmitida oralmente através dos mais velhos ou especialistas (criadores, curandeiros, etc.), e é, geralmente, apenas partilhada com poucas pessoas seleccionadas dentro da comunidade.

CONHECIMENTO LOCAL E DIMENSÕES DO GÉNERO

O conhecimento local está integrado nas estruturas sociais. Diferentes grupos de pessoas, ex. etnias, clãs, géneros, grupos etários ou de riqueza podem possuir tipos de conhecimento diferentes. Este tipo de conhecimento está relacionado com diferenças existentes que dizem respeito ao:

O género e o conhecimento local estão, portanto, ligados de muitas maneiras. As mulheres e os homens geralmente possuem capacidades muito diferentes e conhecimentos diferentes das condições locais e vida quotidiana. Por exemplo, as mulheres são utilizadoras e processadoras importantes dos recursos naturais para a subsistência humana, como tal, elas são muitas vezes os repositórios do conhecimento local para a gestão sustentável dos recursos. Por outro lado, os homens podem ter mais conhecimento de assuntos de produção. Em muitas sociedades as mulheres têm a responsabilidade principal de produzir e recolher alimentos, assegurar água, combustível e medicamentos. Também fornecem um rendimento em dinheiro para a educação, cuidados de saúde e outras necessidades familiares. Para além disso, as mulheres também contribuem com muito do trabalho e da tomada de decisões diária referente à produção de culturas e criação de animais.

Embora tanto os homens como as mulheres estejam envolvidos na selecção de culturas e tenham conhecimentos altamente específicos, usam critérios de selecção substancialmente diferentes. Os critérios e conhecimentos das mulheres são geralmente ignorados por investigadores de selecção e conservação de variedades de plantas. Onde as mulheres são as principais produtoras das culturas, elas seleccionam conscientemente as variedades que respondem a uma vasta gama de critérios relacionados com a produção, processamento, armazenamento e preservação, assim como qualidades da culinária. Quando os homens são os produtores principais, eles dependem dos membros femininos da família para se aconselharem a respeito das características não relacionadas com a produção de culturas no campo, particularmente as relacionadas com o processamento após a colheita e utilização culinária (Howard 2003).

A idade é um outro factor importante que influencia o conhecimento local, as pessoas mais jovens tendem a estar menos cientes da sua relevância. A pesquisa no Gana e na Zâmbia sobre medicamentos tradicionais, por exemplo, mostrou que as gerações jovens geralmente subestimam este conhecimento. Isto acontece, pelo menos parcialmente, porque os medicamentos tradicionais raramente trazem rendimentos económicos altos aos seus praticantes (Notas IK, №. 30). Dependendo das estratégias de subsistência adoptadas por diferentes pessoas, ou entre gerações, irá variar a relevância do conhecimento local para a produção agrícola.

O conhecimento local, e as diferenças de género relacionadas, podem ser vistas como um factor chave para definir e influenciar a diversidade de plantas e animais. As práticas de selecção, gestão e uso dos recursos genéticos dos agricultores desempenharam um papel importante na conservação da biodiversidade agrícola. A gestão continuada destes recursos vai desempenhar um papel significativo para o sucesso de estratégias futuras. O conhecimento local pode ajudar a aumentar a relevância e eficiência dos esforços de conservação da agrobiodiversidade em várias situações:

Contudo, temos que estar conscientes que existem limitações claras para a construção sobre o conhecimento local. Estas limitações são de tipos diferentes e incluem as seguintes:

[Caixa 2] AUMENTAR A INDEPENDÊNCIA PASTORÍCIANO QUÉNIA ATRAVÉS DO DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO SUSTENTÁVEL
No Quénia, um programa de desenvolvimento integrado para pastores junta o conhecimento tradicional (indígena) e o conhecimento técnico moderno para a formação e manuais no tratamento de doenças do gado. O programa pretende recolher conhecimento indígena de diferentes grupos étnicos, partilhar conhecimentos e práticas e promover a pastorícia como modo válido de produção e forma de vida. Em todas as actividades do projecto, a Associação Económica de Desenvolvimento Pastoral do Quénia (KEPDA) junta o conhecimento tradicional com o conhecimento técnico moderno.
A compreensão e consciência de questões chave são então promovidas através de publicações e redes de trabalho. Esta abordagem tem um potencial considerável para o melhoramento sustentável da produtividade das terras secas. No passado, o conhecimento local era considerado principalmente como um tópico de investigação, e o conhecimento técnico era considerado como um substituto das práticas “primitivas” ou ultrapassadas. Este projecto tem como objectivo integrar estes dois grupos de conhecimento.
Fonte: Banco Mundial

Da perspectiva dos meios de vida, o conhecimento local continua a ser um bem importante para recurso das populações pobres. Mais ainda, estudos recentes enfatizam a relevância do conhecimento local sobre as plantas de alimentação indígenas para o aumento da segurança alimentar e saúde. Isto é especialmente verdade para as famílias afectadas pelo VIH-SIDA em África, onde o aumento da insegurança alimentar agrava o impacto negativo do VIH-SIDA. As respostas de base, que dependem da biodiversidade agrícola e o conhecimento local podem contribuir para combater os impactos da insegurança alimentar e do VIH-SIDA (Garí, 2003).

Pontos-chave

NOTAS PARA O FACILITADOR - PÁGINA COM INFORMAÇÃO PROCESSUAL

OBJECTIVO: A ficha informativa 4.1 tem como objectivo permitir aos participantes compreenderem e aplicarem o conceito do conhecimento local à gestão da biodiversidade agrícola. Mais ainda, tem como objectivo estabelecer as ligações entre o modelo dos meios de subsistência e o conceito de conhecimento local como um bem de subsistência.

OBJECTIVOS DA APRENDIZAGEM: Os participantes compreendam a importância do conhecimento local e as ligações entre o conhecimento local e o contexto mais amplo dos meios de vida.

PROCESSO:

  1. Os participantes devem ser encorajados a explorar as questões levantadas na ficha informativa 4.1, baseados nas suas próprias experiências de trabalho. Este exercício não deve levar mais de 1 hora. O formador pode facilitar este processo fornecendo perguntas de orientação, tais como:

  2. A informação gerada durante este exercício pode, posteriormente ser sistematizada pelo facilitador juntamente com os participantes e podem tirar-se as conclusões base. (30 minutos)

  3. O facilitador, pode então, usar os pontos-chave apresentados na ficha informativa 4.1 para comparar com os pontos identificados pelo grupo. Se for apropriado, os aspectos em falta podem ser apresentados aos participantes. (30 minutos)

RESULTADOS ESPERADOS: Os participantes tenham estabelecido uma compreensão partilhada do conceito de conhecimento local e serem capazes de reconhecê-lo como um bem importante de subsistência para as populações pobres. As ligações à biodiversidade agrícola e género tenham sido estabelecidas.

TEMPO NECESSÁRIO: Mínimo 2 horas.

DESAFIOS PARA O CONHECIMENTO LOCAL COMPREENDER O CONTEXTO DA VULNERABILIDADE

O conhecimento local e as instituições locais que gerem este conhecimento são particularmente desafiados pelas rápidas mudanças sócio-económicas e ambientais. Voltando ao modelo dos meios de subsistência, iremos reconhecer que os choques e tendências dentro do contexto da vulnerabilidade podem conduzir a perdas dramáticas do conhecimento local.

Blaikie et al (1992) distingue cinco tendências e choques comuns onde a utilidade e manutenção do conhecimento local são extremamente desafiadas.

Todos estes aspectos apresentam um desafio para os sistemas de conhecimento local. Contudo, o seu impacto não precisa ser negativo. Existem muitos exemplos de adaptações e inovações bem sucedidas, que surgiram como resultado de desafios externos. A fim de melhor compreender esta questão, vamos nos referir à teoria global da co-evolução.

Co-evolução refere-se ao processo contínuo e dinâmico de adaptação mútua entre a espécie humana e o ambiente natural. A teoria da co-evolução ilustra como os sistemas sociais (ex. sistemas de conhecimento) e os sistemas ecológicos estão interligados e como eles se influenciam. A co-evolução leva a adaptações constantes a ambientes em mudança, que por sua vez, levam ao aumento da diversidade. Vamos ver um exemplo para compreendermos esta teoria mais facilmente:

A agricultura em terras secas requer a capacidade específica dos agricultores para identificar e desenvolver variedades de culturas que possam resistir no ambiente difícil. As secas são um problema comum em muitos sistemas agrícolas em África e noutros locais, e os agricultores aprenderam a responder-lhes cultivando uma grande variedade de culturas e variedades. Por exemplo, ao invés de plantarem apenas uma variedade de milho, os agricultores desenvolveram sistemas complexos de interculturas, contendo muitas espécies e variedades. Isto significa que eles podem salvar parte da colheita em caso de seca.

De uma perspectiva co-evolucionária, os desafios que Blaikie et al. (1992) descreveu em cima, irão levar a adaptações e, estas por sua vez, irão aumentar a diversidade existente. Para nós, a lição mais importante a aprender é de que precisamos ter em conta o contexto mais amplo quando tentamos entender o conhecimento local existente. O contexto influencia fortemente as dinâmicas da adaptação e desenvolvimento do conhecimento local e, com isto as adaptações e mudanças dentro da biodiversidade agrícola.

Pontos-chave

NOTAS PARA O FACILITADOR - PÁGINA COM INFORMAÇÃO PROCESSUAL

OBJECTIVO: A ficha informativa 4.2 tem como objectivo aumentar a consciência dos participantes da importância do contexto mais amplo que influencia o desenvolvimento do conhecimento local, e a sua relevância para a gestão da agrobiodiversidade.

OBJECTIVOS DA APRENDIZAGEM: Os participantes compreendam a importância do contexto e identifiquem choques, tendências e outros processos, que têm um impacto, positivo ou negativo, na biodiversidade agrícola e no conhecimento local.

PROCESSO:

  1. O facilitador deve lembrar aos participantes do modelo dos meios de subsistência e fazer referência às questões abordadas no Módulo 2. Isto vai ajudar os participantes a lembrarem-se do contexto da vulnerabilidade e da sua importância para os meios de subsistência das populações. (20 minutos)

  2. Os participantes podem ser convidados a fazer um “brain-storming”, em grupos, sobre os choques e tendências potenciais que podem ter um impacto sobre a existência e relevância do conhecimento local. (1 hora)

  3. As conclusões dos grupos devem ser apresentadas em plenário, onde irão fornecer uma boa base para uma discussão posterior. O facilitador deve enfatizar a importância de distinguir entre efeitos positivos e negativos que as tendências e os choques podem ter em certas situações. (1 hora)

  4. A seguir, os participantes podem aplicar a informação produzida aos seus próprios ambientes de trabalho e discutir a relevância destas conclusões para os seus projectos e iniciativas em vigor ou futuros. (40 minutos)

RESULTADOS ESPERADOS: Os participantes reconheçam a natureza dinâmica do conhecimento local e compreendam as ligações íntimas entre o conhecimento local e o contexto mais amplo dos meios de subsistência.

TEMPO NECESSÁRIO: Mínimo 3 horas.

DESENVOLVER O CONHECIMENTO LOCAL E A AGROBIODIVERSIDADE
Políticas, instituições e processos

Esta secção examina como a as leis internacionais afectam os que trabalham com os gestores dos recursos genéticos de plantas1 (PGR), em programas nacionais (governamentais). Até onde estão obrigados a ir para obter um consentimento informado prévio (PIC) das populações indígenas e comunidades locais? Quando e como podem os recursos para a alimentação e agricultura (PGRFA) serem acedidos, usados ou trocados? Como pode o conhecimento associado ser usado? Para tentar responder a estas questões vão ser examinados tanto os instrumentos internacionais existentes como aqueles em desenvolvimento/negociação.

CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA (CBD)

Este acordo internacional tem o perfil mais alto de concordância sobre este assunto. O artigo 8 (j) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), exige que os signatários “devam, o melhor possível e da forma mais apropriada” e “sujeitos à [sua] legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades indígenas e locais incorporando estilos tradicionais de vida relevantes para a conservação e uso sustentável da diversidade biológica, e promover a sua ampla aplicação com a aprovação e envolvimento dos portadores de tais conhecimentos, inovações e práticas e encorajar a partilha equitativa dos benefícios provenientes da utilização de tais conhecimentos, inovações e práticas”. O artigo 10 (c) obriga as partes contratantes a, “o melhor possível, e da forma mais apropriada… [a] proteger e encorajar o uso tradicional dos recursos biológicos de acordo com as práticas culturais e tradicionais que são compatíveis com a conservação ou requisitos do uso sustentável”.

Ambos os artigos são relativamente vagos: não explicam verdadeiramente o que os estados podem ou devem fazer para cumprirem as suas obrigações. Em parte isto é motivado por as partes em negociação da CBD, não concordarem até que ponto os signatários deveriam ser obrigados a proteger o conhecimento tradicional.

No período que se estendeu até o ano 1992, quando a CBD foi finalizada, a ideia de proteger o conhecimento local era ainda relativamente nova; ninguém tinha nenhuma ideia fixa sobre como devia ser feito. Em parte, como consequência desta ambiguidade, a Conferência das Partes para a CBD (COP-CBD) estabeleceu dois Grupos Abertos e Interseccionais de Trabalho Ad Hoc para investigarem, entre outras coisas, os meios através dos quais os estados membros podiam proteger o conhecimento local “da forma mais apropriada” e “sujeitos a sua própria legislação”.

Em Maio de 1998, a Quarta COP-CBD criou o Grupo Aberto e Interseccional de Trabalho Ad Hoc sobre a Implementação do Artigo 8 (j) a fim de aconselhar as Partes sobre o “desenvolvimento legal e outras formas apropriadas de protecção do conhecimento das comunidades indígenas e locais”. Em Maio de 2000, a Quinta Conferência das Partes estendeu o mandato deste grupo de trabalho e orientou-o para o desenvolvimento de parâmetros para tais sistemas legais.

O mandato do Grupo de Trabalho foi renovado pela Sexta Conferência das Partes (VI COP) em Abril de 2002. Na verdade, o progresso deste grupo foi relativamente lento. Contudo, que é preciso levar em conta que o mandato do Grupo de Trabalho para o 8 (j) é extraordinariamente amplo, ao tentar trabalhar em território não explorado. Além disso, a sua própria existência é um passo importante na evolução potencial de uma norma internacional para a melhor protecção do conhecimento tradicional.

Em Outubro de 2001, os Grupos Abertos de Trabalho Ad Hoc sobre o Acesso e Partilha de Benefícios, criaram o esboço das “Directrizes Bonn”(Bonn Guidelines), destinadas aos estados parceiros que estavam a desenvolver legislação nacional para regular o acesso aos recursos genéticos e partilha de benefícios. Uma variação destas directrizes foi adoptada pelo COP VI em Abril de 2002 através da decisão VI/24.

Apesar de que não serem vinculativas, têm ainda um grande potencial para influenciar a forma como os países desenvolvem as suas leis de acesso. Entre outras, as Directrizes Bonn recomendam que “respeitando os direitos legais estabelecidos das comunidades indígenas e locais, associados aos recursos genéticos a serem acedidos, ou onde o conhecimento tradicional associado a estes recursos genéticos está sendo acedido, deve ser obtido o consentimento prévio das comunidades indígenas e locais, e a aprovação e envolvimento dos detentores do conhecimento local, inovações e práticas, de acordo com as suas práticas tradicionais, políticas nacionais de acesso e sujeitos às leis nacionais.”

Isto é significativo, porque a CBD não declara explicitamente a necessidade de obter o PIC das comunidades constituintes. Tem sido discutido que o requisito para a obtenção do tal consentimento está implícito no texto da Convenção; apesar disso, não é um requisito explícito. Consequentemente, pode ser discutido que as linhas gerais das Directrizes Bonn vão mais longe que a CDB neste contexto. Ou por outras palavras, oferecem uma interpretação da CDB que clarifica uma ambiguidade saliente.

Mais ainda, a COP VI recomendou que os estados deviam incluir, nas suas leis nacionais, requisitos para os países fornecerem a origem dos recursos genéticos e conhecimento tradicional usado quando desenvolvem inovações para os as quais procuram obter direitos IP (Decisões VI/10 e I/24).

OBRIGAÇÕES PARA GESTORES DOS PROGRAMAS NACIONAIS PGRFA

Qual o impacto, em relação às obrigações dos gestores dos programas nacionais PGRFA? Existem duas respostas diferentes para esta pergunta: uma é legal (1) e outra é política/moral (2).

(1) A questão legal preliminar, considerada pelos gestores dos programas nacionais de recursos genéticos, é se o país no qual as actividades do programa estão a ser realizadas ratificou o CBD ou não. Se não, a convenção não se aplica, e os gestores nacionais dos programas de recursos genéticos não precisam seguir a CBD quando tomarem em conta as suas obrigações para com as comunidades indígenas e locais. Se o país em causa tiver ratificado a CBD, os gestores nacionais dos programas de recursos genéticos devem considerar alguns assuntos relacionados.

Primeiro, devem saber que como agentes ou representantes dos governos nacionais, são obrigados pelos padrões estabelecidos pela CBD, mesmo se o país em causa não tiver criado leis para implementar a CBD.

Segundo, se o país tiver implementado legislação, eles devem tomar em conta essas leis para orientarem a forma como devem conduzir as suas operações. Contudo, podem não ter que contar apenas com as leis nacionais a este respeito. É possível que a legislação nacional não implemente todos os padrões estabelecidos na CBD. Em tais casos, o gestor nacional do programa deve considerar voluntariamente o cumprimento de padrões de conduta mais elevados do que aqueles exigidos pela lei nacional.

Isto vai garantir a conformidade com a Convenção. Infelizmente, para os gestores dos programas nacionais, são julgamentos difíceis de fazer e complicados pelos factos acima referidos. Particularmente, a CDB não declara explicitamente, que as leis nacionais de implementação devem exigir aos países que buscam o acesso, que obtenham das comunidades indígenas e locais ou dos detentores do conhecimento tradicional o PIC. Para além disso, as linhas gerais de implementação desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho da CBD sobre o Acesso e Partilha de Benefícios - que inclui o tal requisito - não são legalmente vinculativas. Consequentemente, os governos nacionais têm uma grande latitude na interpretação e implementação da CBD.

Falando estritamente de um ponto de vista legal, e com tais precedentes, os gestores nacionais dos programas de recursos genéticos não conseguem determinar se devem ou não obter o PIC das comunidades indígenas e locais no decurso das actividades do programa. Como foi acima referido, tem sido debatido se a CBD requer o PIC das comunidades, mas não existe nenhum consenso universal sobre este ponto.

(2) Apesar da CBD poder não incluir muitas obrigações legais concretas, deu origem a um aumento a um nível sem precedentes da sensibilidade política para as questões relacionadas com os recursos genéticos. No tribunal de opinião pública, não existe defesa para as partes acusadas de tirar e utilizar os recursos genéticos associados com as comunidades indígenas, sem a sua permissão. As acusações de bio-pirataria (pirataria biológica) não são atenuadas por explicações legais técnicas, quando a actividade em questão tenha sido realizada num país que:

No que respeita às preocupações do público em geral, a CBD cria padrões de conduta aplicáveis a toda a gente, em todo mundo. A reputação dos programas e instituições pode ser perdida numa noite através de alegações de violação do espírito da CBD. O que complica esta situação, mais uma vez, é o facto da CBD ser vaga em termos do que verdadeiramente pode e deve ser feito para avançar com os seus objectivos. A interpretação por um estado subscritor da definição da CBD de comportamento concordante com a convenção pode ser uma definição de outro estado para bio-pirataria.

O termo bio-pirataria é muitas vezes usado para descrever a má apropriação de conhecimento e/ou materiais biológicos de comunidades tradicionais. O caso apresentado a seguir, sobre medicamentos tradicionais, é apenas um exemplo da bio-pirataria (ver Caixa 1). As empresas comerciais e de pesquisa, envolvidas em tais actividades, geralmente utilizam o termo prospecção biológica para as suas actividades de investigação. Contudo, se os benefícios obtidos de tais actividades não forem igualmente partilhados com as comunidades locais, a prospecção biológica pode ser considerada adequadamente como sendo bio-pirataria.

[Caixa 1] USO DO CONHECIMENTO LOCAL PARA A PROSPECÇÃO BIOLÓGICA O caso do desenvolvimento de medicamentos
O conhecimento e uso de plantas específicas para propósitos medicinais, geralmente chamado medicina tradicional, são uma componente importante do conhecimento local. No passado, os medicamentos tradicionais eram uma grande fonte de materiais e informação para o desenvolvimento de novos medicamentos. Contudo, no século 20, novas fontes para fármacos levaram a um declínio na importância da etnobotânica nos programas de descoberta de medicamentos. Contudo, novas descobertas de agentes anti cancerosas potencialmente potentes em plantas (tais como a turmerica o taxol), como também um rápido mercado crescente de remédios herbáceos, ressuscitou o interesse da indústria no conhecimento e práticas medicinais tradicionais. O restaurar do interesse na medicina tradicional resultou num aumento alarmante da exploração do conhecimento indígena de cultivo e aplicação de recursos genéticos. Em relação a isto, as vendas mundiais só de medicamentos herbáceos foram estimadas em 30 biliões de dólares Americanos no ano 2000.
Fonte: Svarstad and Dhillion

O pequeno exemplo acima ilustrado, mostra que, de um lado, o conhecimento local pode ser “explorado” ou “extraído” através de processos de pesquisa. As suas “sabedorias” podem então ser incorporadas por cientistas nos métodos formais de pesquisa e programas orientados comercialmente. Nestes casos, é duvidoso saber se os “donos” do conhecimento original beneficiam dos ganhos comerciais realizados.

Por outro lado, os actores externos e locais podem juntar o seu conhecimento respectivo a fim de produzir um resultado maior do que a soma das partes. Os exemplos seguintes, do Quénia e Camarões, ilustram os impactos positivos da pesquisa colaborativa baseada no conhecimento local (ver Caixas 2 e 3).

[Caixa 2] AS ESPÉCIES DE PLANTAS INDÍGENAS COMESTÍVEIS, DISPONIVEIS LOCALMENTE, AUMENTAM A SAÚDE DA COMUNIDADE, FORNECEM RENDIMENTO E CONSERVAM A BIODIVERSIDADE NO QUÉNIA
O museu nacional do Quénia está a compilar um banco de dados de plantas alimentares indígenas do Quénia. Isto para compilar dados agronómicos, nutricionais, culturais e dados de mercado sobre as espécies prioritárias; para promover o cultivo, consumo e comercialização destes alimentos através de demonstrações de campo, materiais educacionais e dos média. As populações abandonaram os seus alimentos tradicionais a favor dos alimentos exóticos. Isto era mais comum entre as gerações jovens que tinham orgulho nos seus padrões “modernos” de consumo. Contudo, a pobreza, fome e má nutrição eram comuns nas zonas rurais, apesar dos alimentos locais estarem facilmente disponíveis. Muito conhecimento local sobre o valor nutricional e o cultivo de plantas comestíveis locais estava a ser perdido. A maioria das pessoas já não sabia, por exemplo, quando e onde colher sementes. Por nunca ter sido escrito, o conhecimento indígena dos mais velhos estava a escapar-se dia após dia. Um número de espécies importantes, ou variedades de espécies, estavam à beira da extinção. O conhecimento indígena era então o ponto de partida. Os especialistas em nutrição, ecologia e botânica tiveram que basear a sua pesquisa nele, porque simplesmente não havia tempo, dinheiro ou recursos humanos suficientes para duplicar todo esse conhecimento. O significado científico, económico e sócio-cultural do conhecimento indígena, tornou-se aparente, à medida que os especialistas e praticantes trabalharam com ele. A prática é benéfica de várias formas. Ela melhora os padrões de vida e a saúde das comunidades locais, aumenta o conhecimento que os extensionistas usam no trabalho diário e gera conhecimento que é útil às ONGs que procuram formas de aliviar a pobreza e melhorar a saúde pública. É gerado conhecimento científico que é útil para a preservação da diversidade cultural e biológica. Ao aumentar o status do conhecimento indígena, aos olhos das comunidades locais, a prática ajuda a aliviar a pobreza e aumenta o respeito das populações pela sua própria cultura. No entanto, existem alguns perigos. Os interesses comerciais podem resultar numa selecção de espécies e variedades e reduzir a diversidade presente. Para além disso, a pesquisa pode expor o conhecimento local à pirataria.
Fonte: Banco Mundial

[Caixa 3] A MEDICINA ETNOVETERINARIA TRADICIONAL E A MEDICINA MODERNA TRABALHAM COMO PARCEIROS NOS CAMARÕES
O sector da veterinária moderna é atormentado por inúmeros constrangimentos. Isto inclui o fornecimento errático e despesas proibitivas dos medicamentos e abastecimentos veterinários, meios de comunicação deficientes e a falta da mão-de-obra humana. O projecto promoveu o uso complementar de medicamentos veterinários convencionais e indígenas para a produção sustentável de gado e a conservação de recursos de plantas medicinais. Através da colaboração interdisciplinar, com organizações governamentais e não governamentais, o projecto documentou o tratamento indígena de várias doenças e perturbações de gado. Actualmente, as doenças estão a ser tratadas usando remédios eficazes que eram usados pelas comunidades locais muitos anos antes da chegada dos medicamentos modernos. A prática depende, acima de tudo, do conhecimento indígena dos agricultores. Os medicamentos modernos complementam os indígenas e são usados para certas doenças, se não houver disponibilidade de remédios indígenas eficazes. Actualmente, os agricultores usam mais os remédios locais, que são muito mais baratos que os modernos. Os baixos custos de investimento e o aumento de produtividade do gado melhoram os lucros e nutrição dos agricultores. Porque a prática se baseia nas práticas e conhecimentos indígenas, esta goza de uma alta taxa de aceitação. O conhecimento indígena é preservado duma forma sustentável e os agricultores são fortalecidos e encorajados a participarem no desenvolvimento. Finalmente, existe uma consciência aumentada da importância da conservação ambiental,
Fonte: Banco Mundial

Uma concepção errada comum assume que os “benefícios” são puramente monetários. Nos casos onde o uso dos recursos genéticos é comercial, quaisquer ganhos (royalties) surgem entre dez e vinte anos depois do acesso original dos recursos genéticos. Uma vez que as probabilidades de uma amostra individual ter êxito no mercado serem muito remotas, apenas uma pequena proporção de transacções de acesso individual pode fazer surgir tais benefícios. Portanto, os exemplos acima referidos mostram que os benefícios não são necessariamente apenas de natureza monetária. Os empreendimentos colaborativos no Quénia e Camarões contribuem para o reforço das comunidades locais para revalorizarem o conhecimento local existente e melhorarem a segurança alimentar e resistência.

Falando política e moralmente, é aconselhável para os gestores dos programas nacionais dos recursos genéticos que sejam extremamente cuidadosos na certeza da obtenção de PIC dos representantes das comunidades indígenas e locais, mudando e usando os recursos genéticos e informações relacionadas associadas com essas comunidades.

O ACTO DA UNIÃO PARA A PROTECÇÃO DE VARIEDADES VEGETAIS (UPOV) DE 1991

O Acto da UPOV de 1991 providencia uma protecção sui generis e propriedade intelectual para variedades de plantas. Os direitos exclusivos são dados aos criadores comerciais de plantas. Os direitos dos criadores de plantas são concedidos por um período de 15 a 30 anos para variedades de plantas novas, distintas, estáveis e homogéneas. Os direitos dos criadores de plantas têm sido altamente criticados por organizações não-governamentais dedicadas à conservação da diversidade genética e à protecção de comunidades de pequenos agricultores. O sistema UPOV tem sido acusado de “jogar o jogo” de companhias gigantes de sementes que promovem a monocultura intensiva, e a substituição de sementes tradicionais por sementes altamente produtivas e resistentes. Também, o Acto UPOV de 1991 limita o exercício do privilégio dos criadores. Na realidade, o Artigo 15 (2) explícita que “cada Parte Contratante pode, dentro de limites razoáveis, e sujeita à salvaguarda dos interesses legítimos do criador, restringir o direito do criador em relação a qualquer variedade de forma a permitir aos agricultores usarem para propósitos de propagação, nas suas próprias terras, o produto da colheita que tenham obtido através da plantação, nas suas próprias terras, a variedade protegida”.

Por outro lado, as opiniões pró UPOV argumentam que é a ferramenta legal corrente mais eficiente para despoletar a investigação e desenvolvimento em biotecnologia para alimentação e agricultura. No processo de revisão do artigo 27 do acordo TRIPS, alguns países industrializados são a favor de designar o Acto UPOV de 1991 como o regime sui generis ara a protecção das variedades de plantas.

Ao nível regional, os membros do Office African de la Propriété Intellectuelle (Gabinete Africano da Propriedade Intelectual) juntaram-se ao Acordo de Banguí2 de 28 de Fevereiro de 2002. O que reflete a adesão genérica aos princípios e obrigações do Acto UPOV de 1991.

TRATADO INTERNACIONAL SOBRE OS RECURSOS GENÉTICOS DE PLANTAS PARA ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA (ITPGRFA OU TRATADO INTERNACIONAL DE SEMENTES)

O Tratado Internacional foi adoptado pela Assembleia-Geral da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) em Novembro de 2001 e entrou em vigor em Junho de 2004. O tratado foi desenvolvido e adoptado depois de um longo processo de negociação, que durou sete anos, ao nível internacional e dá resposta a assuntos salientes que não foram cobertos pela CBD3. O ITPGR lida especificamente com a natureza e necessidades do sector agrícola. Procurou encontrar um equilíbrio entre os interesses dos países desenvolvidos e em desenvolvimento e entre os direitos dos agricultores (variedades dos agricultores) e criadores (variedades comerciais, linhas dos criadores). Contudo, está em harmonia com a CBD e reflecte alguns dos seus princípios mais importantes, incluindo:

O que torna o ITPGRFA um grande triunfo, é a aprovação formal dos Direitos dos Agricultores através de um instrumento legalmente vinculativo ao nível global. Isto é um marco importante, pois é um passo importante para o reconhecimento e implementação dos direitos dos inovadores informais (agricultores). Coloca-os em pé de igualdade com os direitos já garantidos aos inovadores formais (criadores modernos). O artigo 9 do Tratado Internacional postula que: “De acordo com as suas necessidades e prioridades, cada Parte Contratante deve, apropriadamente, e sujeito à legislação nacional, tomar medidas de protecção e promover os Direitos dos Agricultores, incluindo”:

Os Direitos dos Agricultores estão baseados no reconhecimento da enorme contribuição feita por comunidades locais e agricultores indígenas de todas as regiões do mundo. Isto inclui, particularmente, os que estão nos centros de origem e diversidade de culturas. Para além disso, os Direitos dos Agricultores cobrem a conservação e desenvolvimento dos recursos genéticos de plantas que constituem a base da produção de alimentos e agricultura em todo o mundo.

[Caixa 4] DIREITOS DOS AGRICULTORES
Os Direitos dos Agricultores incluem:
Protecção do conhecimento tradicional relevante aos recursos genéticos de plantas para alimentação e agricultura;
O direito de participarem equitativamente na partilha de benefícios resultantes da utilização dos recursos genéticos de plantas para alimentação e agricultura; e
O direito de participar na tomada de decisões, a nível nacional, sobre questões relacionadas com a conservação e uso sustentável dos recursos genéticos de plantas para alimentação e agricultura.

Neste caso, o princípio dos Direitos dos Agricultores, na sua totalidade, está explicitamente sujeito à legislação nacional. Como consequência, legalmente falando, os gestores dos programas nacionais de recursos genéticos podem apenas olhar para a legislação do país no qual as actividades relevantes do programa estão a ser realizadas e determinar quais são as suas responsabilidades. Apesar do efeito legal de submeter em tornar os direitos dos agricultores às leis nacionais, existe pouca dúvida de que a inclusão destas provisões no Tratado Internacional irá sublinhar a pressão política que já existe em virtude da CBD (e menos ainda, a Convenção para Combater a Desertificação das Nações Unidas - a UNCCD). Isto refere-se em particular à obtenção do PIC na aquisição, troca e uso de recursos genéticos e conhecimento relacionado associado com as populações indígenas e comunidades locais. O artigo 4 e 6 estipulam que as políticas e leis nacionais relacionadas com a agrobiodiversidade, necessitam de ser definidas ou ajustadas para cumprirem os requisitos do Tratado. Como os Direitos dos Agricultores são tão inovadores, é muitas vezes necessária nova legislação. Alguns países, tais como a Índia, já aprovaram novas leis tais como o Acto № 53 de 31 de Agosto de Protecção de Variedades de Plantas e de Direitos dos Agricultores.

Outro avanço importante relacionado com o tratado é a partilha de benefícios que resultam do uso dos recursos genéticos de plantas duma forma justa e equitativa. Em particular, a partilha de benefícios monetários que surgem do uso comercial4

Acredita-se que “Os Direitos dos Agricultores são cruciais para a segurança alimentar ao providenciarem um incentivo para a conservação e desenvolvimento dos recursos genéticos de plantas que constituem a base da produção agrícola e alimentar em todo o mundo. Tornar esses direitos uma realidade, sob o Tratado e outros instrumentos legais relevantes, ao nível nacional e também entre nações, vai representar um desafio nos anos vindouros…” (Mekoaur, 2002).

A CONVENÇÃO AFRICANA SOBRE A CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E RECURSOS NATURAIS

Adoptada na Cimeira das Nações Africanas em Maputo, Moçambique, em 11 de Julho de 2003, a Convenção Africana revista sobre a Conservação da Natureza e Recursos Naturais compromete os estados membros com a conservação e uso sustentável dos recursos naturais. A Convenção Africana requer que as partes providenciem o acesso justo e equitativo aos recursos genéticos, em termos acordados mutuamente, como também a partilha justa e equitativa dos benefícios resultantes das biotecnologias, baseadas nos recursos genéticos e conhecimento local relacionado, com os dadores de tais recursos.

Ao reconhecer os direitos tradicionais das comunidades locais e do conhecimento indígena, a Convenção compele os estados membros a aprovarem legislação nacional para assegurar que sejam respeitados os direitos tradicionais, direitos de propriedade intelectual das comunidades locais incluindo os direitos dos agricultores. Para além disso, a Convenção requer que o acesso ao conhecimento tradicional esteja sujeito ao consentimento informado prévio (PIC) das comunidades e que as comunidades participem no processo de planeamento e gestão dos recursos naturais.

OUTROS ACORDOS E DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS

Outros acordos internacionais, embora não mencionem exactamente o conhecimento indígena e local, certamente apoiam a noção de que os países estão sob uma obrigação crescente de introduzir políticas para lidar com o conhecimento indígena e local. Por exemplo, a Convenção Internacional sobre os Direitos Sociais e Culturais (ICESR) inclui o direito ao desenvolvimento e difusão da ciência e cultura. A mesma obriga, também, os signatários a providenciarem medidas para o usufruto da herança cultural das populações indígenas.

A Organização Internacional de Trabalho (OIT), na Convenção sobre as Populações Indígenas e Tribais nos Países Independentes (OIT 169) declara que os países membros devem promover “a realização completa dos direitos sociais, económicos e culturais [das populações indígenas e tribais] em relação à sua identidade social e cultural, seus costumes e tradições e suas instituições.” Apesar de nenhum destes instrumentos criar uma obrigação explícita para que os estados implementem meios de legalizar formas exclusivas de direitos de protecção dos portadores do conhecimento tradicional, pode dizer-se que elas suportam este tipo de medidas legislativas.

ESBOÇO DA DECLARAÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS

O Artigo 29 do Esboço da Declaração sobre os Direitos das Populações Indígenas declara que as populações indígenas “têm direito ao reconhecimento da posse completa, controle e protecção da sua propriedade cultural e intelectual. Elas têm o direito a medidas especiais para controlar, desenvolver e proteger as suas ciências, tecnologias e manifestações culturais, incluindo humanas e outros recursos genéticos, sementes, medicamentos, conhecimento das propriedades de fauna e flora, tradições orais, literatura, desenhos e artes visuais e de interpretação.”

O COMITÉ INTERGOVERNAMENTAL SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL, RECURSOS GENÉTICOS, CONHECIMENTO TRADICIONAL E FOLCLORE

Entre outras coisas, o Comité Intergovernamental (IC) desenvolverá recomendações para um modelo não vinculativo para cláusulas de propriedade intelectual. Estas seriam incluídas nos acordos contratuais que governam as trocas do PGRFA entre várias instituições públicas e privadas e bancos nacionais de genes. Irá, também olhar para outros tipos de trocas, ex. o fornecimento de plantas silvestres com utilidades medicinais de uma comunidade indígena para os institutos de pesquisa estrangeiros. O IC está também a examinar meios através dos quais o conhecimento tradicional (TK) pode ser incluído na procura de licenças por gabinetes para arte prévia. Actualmente, o IC está a considerar trabalhar para recomendar que um número de jornais relacionados com o TK seja incluído em tais procuras. Em preparação para o próximo encontro, o Secretariado irá compor uma lista de jornais relacionados com o TK, e fazer um esforço inicial para estabelecer o que é mais importante para ser incluído.

O ACORDO RELACIONADO COM A TROCA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

O artigo 27(3)(b) do acordo TRIPS exige a todos os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) que disponibilizem uma protecção da propriedade intelectual para as variedades de plantas na forma de patentes ou “protecção efectiva sui generis”. Não existe menção no acordo TRIPS ao conhecimento tradicional, mas é suficientemente flexível para permitir algumas formas de protecção. Contudo, existiu uma revisão do artigo 27(3)(b)(em 1999), e uma revisão do progresso dos estados membros na implementação do acordo TRIPS (em 2000) onde podia ser possível introduzir emendas relacionadas com a protecção do conhecimento tradicional.

Muitos países em desenvolvimento tentaram incluir a consideração da protecção do conhecimento tradicional no contexto destas revisões. Os seus esforços coincidiram, e consequentemente foram incluídos, com a decisão de lançar uma nova ronda compreensiva de negociações comerciais sob a égide da OMC. Com este fim, o artigo 19 da Declaração Ministerial de Doha, instrui o Conselho do TRIPS a examinar: “a relação entre o Acordo TRIPS e a Convenção sobre a Biodiversidade Biológica, a protecção do conhecimento tradicional e folclore,” no contexto da sua revisão do artigo 27.3 (b) e a revisão da implementação do Acordo TRIPS. Entretanto, parece pouco provável que os estados membros da OMC possam chegar a um consenso necessário para alterar o acordo TRIPS. Isto iria obrigar os membros a providenciar alguma forma de protecção da propriedade intelectual para o conhecimento indígena e local (incluindo, presumivelmente, as variedades dos agricultores que satisfizeram o novo critério para protecção sui generis). Até agora, não existe nada explícito no acordo TRIPS que obriga os gestores do PGR a obter o PIC das comunidades indígenas se quiserem colher ou trocar essas variedades de plantas comunitárias.

CONCLUSÃO

Nos anos recentes tem havido uma proliferação de fora internacionalis considerando diferentes aspectos da protecção das tecnologias e conhecimento das populações indígenas e comunidades locais. Existe uma tendência crescente para o reconhecimento/criação de direitos de controlo sobre os recursos genéticos associados a estas comunidades e sobre o conhecimento com elas relacionado. Por enquanto, a lei internacional não foi suficientemente longe para estabelecer sequer padrões mínimos de criação e reforço dos direitos sui generis as populações indígenas, para as comunidades sobre as suas tecnologias e conhecimento associado. Nem está estabelecido explicitamente, em nenhum documento legal vinculativo internacional corrente, que é necessário obter o PIC das populações indígenas e das comunidades locais antes de recolher, utilizar ou trocar esses recursos e conhecimentos. Pode, certamente, ser argumentado que a lei internacional está definitivamente a encaminhar-se nessa direcção, porém, ainda não está lá. Entretanto, dado o clima político, podemos argumentar que todos os gestores nacionais dos programas dos recursos genéticos são incumbidos a exceder as suas obrigações legais estritas. Particularmente, devem ter altos padrões de comportamento em termos da obtenção do PIC das populações indígenas e comunidades locais quando estão a aceder, trocar e utilizar os recursos genéticos e as informações relacionadas com as quais estes grupos estão associados.

Pontos-chave

NOTAS PARA O FACILITADOR - PÁGINA COM INFORMAÇÃO PROCESSUAL

OBJECTIVO: A ficha informativa 4.3 têm como objectivo introduzir aos acordos legais importantes que são relevantes para a gestão e partilha do conhecimento local.

OBJECTIVOS DA APRENDIZAGEM: Os participantes estejam cientes dos acordos legais existentes e possam reflectir sobre a influência das políticas e instituições na gestão do conhecimento local e o seu impacto na gestão da biodiversidade agrícola.

PROCESSO:

Os participantes devem ter tido acesso a estas fichas informativas antes da sessão a fim de serem capazes de absorver o conteúdo dos diferentes acordos legais.

Os participantes podem começar esta sessão dividindo-se em três grupos. Cada grupo deve ler um dos três exemplos de casos fornecidos na ficha informativa 4.3 (incluindo o exemplo na página de exercícios). A sua tarefa será identificar estratégias de gestão de conhecimento e as questões chave relacionadas, de forma a ser melhor exploradas e discutidas durante a sessão. (1 hora)

Posteriormente, o facilitador pode apresentar brevemente as estruturas legais relevantes, que estão relacionadas com o conhecimento local e partilha de benefícios. Estas estruturas podem ser clarificadas numa sessão plenária. (1 hora)

Os participantes podem trabalhar, em grupo, nos pequenos exemplos e pensar em possíveis estratégias para aumentar o envolvimento e partilha de benefícios dos agricultores. Para consegui-lo, os participantes podem ser encorajados a basearem-se na sua experiência de trabalho. As descobertas devem ser apresentadas em plenário e organizadas pelo facilitador. (1 hora)

RESULTADOS ESPERADOS: Os participantes estarem cientes da existência das estruturas legais importantes com relação ao conhecimento local e partilha de benefícios, e tenham identificado estratégias relevantes para melhorar o envolvimento e partilha de benefícios dos agricultores.

TEMPO NECESSÁRIO: mínimo 3 horas.

Nota: Se for requerida informação adicional sobre leis e políticas, referir-se a Bragdon, S., Fowler, C. e Franca, Z. (eds), (2003). Leis e política de relevância para a gestão dos recursos genéticos de plantas. Módulo de aprendizagem. ISNAR, Haia, Países Baixos.

PÁGINA DE EXERCÍCIOS
Promoveras estratégias das comunidades locais para a conservação

TAREFA DE TRABALHO DE GRUPO: Por favor leia o pequeno estudo do caso que se segue e, com o seu grupo, discuta a possibilidade de promover alguma coisa semelhante dentro do seu contexto de trabalho. Olhe para as forças e fraquezas deste tipo de iniciativa, e discuta as oportunidades e limitações. Use o estudo do caso fornecido como um ponto de partida, mas use também a experiência adquirida no trabalho com os agricultores e outros participantes.

[Caixa 7] PROMOVER ESTRATÉGIAS DAS COMUNIDADES LOCAIS PARA A ONSERVAÇÃO DOS RECURSOS GENÉTICOS DE PLANTAS MEDICINAIS EM ÁFRICA
Em África, mais de 80% da população usa medicamentos provenientes de plantas e animais para satisfazer as suas exigências de cuidados de saúde. A maior parte das plantas e animais utilizados na medicina tradicional são adquiridos no mato e, em muitos casos, a procura excede a oferta. Com o crescimento da população Africana, a procura de medicamentos tradicionais irá aumentar o que vai provocar uma grande pressão sob os recursos naturais. A África tem uma história de conservar a biodiversidade em plantas medicinais por duas razões: as práticas tradicionais existentes em volta do seu uso, reflectem o conhecimento local e sabedoria, e as plantas estão disponíveis prontamente e são relativamente baratas - sendo fácil colhê-las no mato ou a simplesmente cultivá-las. As ervanárias preservaram o conhecimento tradicional e práticas de medicamentos provenientes de ervas, usando-as muitas vezes em combinação com poderes espirituais. Certas famílias guardam as suas receitas como um segredo.
As plantas continuam a fornecer à maior parte das populações rurais Africanas, ingredientes para medicamentos tradicionais. Para muitas gerações em todo o continente, pequenas parcelas de terra, perto das residências, têm sido utilizadas como jardins caseiros. Porque estes jardins servem a necessidades próprias da família, possuem toda a gama de plantas que fornecem alimentos e medicamentos. Elas são principalmente utilizadas para prevenir e tratar doenças comuns, mas a sua conservação também significa que o conhecimento indígena, associado com às suas únicas propriedades e correcta aplicação, será preservado.
Através duma combinação de pesquisa participativa e actividades de desenvolvimento envolvendo as comunidades locais, os trabalhadores do projecto aprendem primeiro as soluções das comunidades locais para a conservação de plantas medicinais e para as porem a uso seguro e efectivo para os cuidados de saúde tradicionais.
Incentivos apropriados oferecem encorajamento adicional aos esforços da comunidade de salvaguardar a biodiversidade a nível da aldeia. Os incentivos económicos incluem fundos de sementes, a promoção de actividades geradoras de rendimentos, e ajuda com a comercialização. Os incentivos sociais incluem assistência técnica e formação, informação e consciencialização relacionada com a conservação, provisão de equipamentos e, para além disso, conselhos e assistência técnica e científica. Os incentivos institucionais incluem garantias de direitos de propriedade total, e o estabelecimento de comités e associações locais para monitorar e planear.
O facto de que pode ser gerado rendimento das plantas medicinais e medicamentos tradicionais, ajuda a manter a prática do seu cultivo. O reconhecimento do valor da medicina tradicional e plantas medicinais irá promover métodos sustentáveis de propagação e cultivo. O conhecimento e práticas tradicionais, relacionados com plantas medicinais, serão preservados à medida que os medicamentos herbáceos forem usados cada vez mais para complementar outras formas de cuidados de saúde na comunidade.
Fonte: TraditionalKnowledge case studies. www.worldbank.org/afr/ik/casestudies/Banco Mundial

LEITURAS CHAVE

REFERÊNCIAS

Blaikie, P.M. et al. 1992. In: Long, N. & Long, A. (eds.). Battlefields of knowledge: The interlocking theory and practice in social research and development. London, New York, Routledge.

Bragdon, S., Fowler, C. and Franca, Z. (eds). 2003. Laws and policy of relevance to the management of plant genetic resources. Learning Module. ISNAR. The Hague, The Netherlands.

Briggs, J. & Sharp, J. 2003. De-romanticising indigenous knowledge: challenges from Egypt. In Indigenous environmental knowledge and sustainable development in semi-arid Africa, UK, University of Glasgow.

Gari. 2003. Local agricultural knowledge key to fighting HIV/AIDS and Food Security, FAO Consultancy Report.

GRAIN. 2004. Good ideas turned bad? A glossary of right-related terminology. www.grain.org/seedling/seed-04-01-2-en.cfm

IISD Trade and Development Brief, No. 7. Traditional knowledge and patentability, International Institute for Sustainable Development.

IK Notes No. 30. March 2001. Indigenous knowledge and HIV/AIDS: Ghana and Zambia

Halewood, M. 2003. Genetic resources, traditional knowledge and international law. In Conservation and sustainable use of agricultural biodiversity. Published by CIP-UPWARD, in partnership with GTZ GmbH, IDRC of Canada, IPGRI and SEARICE.

Hansen, S., Van Fleet, J./American Association for the Advancement of Science (AAAS), 2003. Traditional Knowledge and Intellectual Property: A Handbook on Issues and Options for Traditional Knowledge Holders in Protecting their Intellectual Property and Maintaining Biological Diversity.

Howard, P. 2003. Women and plants, gender relations in biodiversity management and conservation. United Kingdom, ZED Books.

Mekoaur, A. 2002. A global instrument on agrobiodiversity: The International Treaty on Plant Genetic Resources for Food and Agriculture. FAO Legal papers online #24, www.fao.org/Legal/prs-ol/lpo 24.pdf

Svarstad, H. and Dhillion.S.S. (eds) 2000. Responding to Bioprospecting: From Biodiversity in the South to Medicines in the North, Oslo, Norway

World Bank. Traditional knowledge case studies. www.worldbank.org/afr/ik/casestudies/

Web sites
FAO Web site on HIV/AIDS: www.fao.org/hivaids
FAO Web site on Gender, Agrobiodiversity and Local Knowledge: www.fao.org/sd/links
World Bank Web site on Local Knowledge: www.worldbank.org/afr/ik/what.htm

1 Os gestores dos recursos genéticos de plantas são, principalmente, agricultores e comunidades agrícolas de todo o mundo que têm sido e continuam a ser responsáveis pela gestão de recursos genéticos. Nesta secção referimo-nos aos gestores PGR como aqueles que interagem com as comunidades agrícolas na gestão dos seus recursos (criadores, cientistas, gestores de bancos de genes).

2 O Acordo Banguí é a resposta Africana à UPOV.

3 O acesso a colecções ex situ não é requerido estar em concordância com os Direitos dos Agricultores da CBD.

4 Para mais informação em mecanismos de partilha, parcerias e colaboração entre os sectores público e privado, pagamentos voluntários e obrigatórios, ver Mekoaur, A. 2002. Um instrumento global sobre a agrobiodiversidade: O Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos de Plantas para a Alimentação e Agricultura. Trabalhos Legais On-line, #24 (disponível em www.fao.org/legal/prs-ol/lpo 24.pdf).


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